Demoraste. Onde estiveste? Nem eu mesma sei. Perdida, suponho. Ausente.
Contava que me soubesses dizer onde. Nem eu própria sei. Vaguei por ruas sem
placas, à moda portuguesa, caí em buracos que outrora eram pequenas
imperfeições no alcatrão. Pode-se dizer que me esfolei bem, mas nem doeu.
Quando se está anestesiada, qualquer parábola se ouve. Nem teria forças para
gritar, se assim o quisesse, era apenas uma boneca insuflável furada, inútil,
terminada a festa, cessados os gritos, finda a bebida…
Mas tiveste medo? Só de mim, apenas e exclusivamente de mim. Os outros
eram só sombras, sombras que deviam ser coloridas talvez, mas que não passavam
de esboços crepitantes no meu subconsciente. Na realidade, fiz a viagem
sozinha. Ninguém me acompanhou, ninguém me deu a mão quando senti frio, quando
implorei pela Morte, que teimou em não vir. Deve ser preguiçosa, só pode.
Aquela ceifa de Inverno deve ser cansativa, demasiados idosos a definhar com
pneumonias, não há esperança de vida que os livre desses bicharocos que teimam
em encharcar pulmões e rir-se de nós. Não percebo… Se não tinhas dor, porquê
partir? Ah, boa pergunta… O estupor não é assim tão interessante quanto isso,
ao fim de um dia ou dois, cansa, desfaz os ossos. Nunca fui de caminhar sem
rumo, sem objectivo, mas era tudo quanto aquele vazio me podia ofertar. Apenas
passos ocos para nenhures. Apenas suor sem frutos. Apenas movimento, em
círculos apertados, dentro das pontes da minha mente. Ninguém quer um destino
destes… Muito melhor seria uma praia com refrescos e palmeiras simétricas.
Descer ao inferno e voltar dele não tem muita saída nas agências de viagens. É
preciso alguém de gosto requintado. Ou então, uma alma em cissão, exaurida da
vida, como a minha. Porquê? Não sabes? Lá se vai a teoria da omnipresença… É
simples, fiz do meu passado o meu futuro. Que resposta mais estranha. Assim é,
mas o Nobel da simplicidade nunca me atraiu.
Mas sobreviveste… Sim, mas às vezes sonho com aquela caverna… Caverna,
que caverna? Caverna, rua sem fim, inferno, tanto faz, é tudo uma alegoria, na
realidade não houve nada, nem caminho, nem sombras, nem frio, só eu esquecida
dentro dos despojos da minha mente, a ganhar pó, a apodrecer por dentro, até
ficar fora de validade… Não houve nenhuma revelação, não houve um dilúvio para
salvar a minha honra, apenas memórias já frias, enfiadas à pressão numa bela
gaveta, decorada com viciantes papoilas, para esconder a mais bela parte da
minha vida. Ou talvez minta. Pensando melhor, espetei-me, sempre cheia de graciosidade,
num espelho. O que mais poderia ser, melhor “cliché” não se arranjava, mas
odisseias mentais não se discutem, não mentiria duas vezes. Dentro daquele
vidro polido, a devolver-me um olhar de inocência, estava a criatura mais
desgraçada em que já pus a vista em cima. Vi-me desolada, desfiando a minha
carne lentamente, como se fosse um monte de lã, a expressão derretida, uma boca
disforme mastigando uma dor insuportável, que se tornara a minha própria razão
de viver. E disse basta. Tão simples quanto isso. Chocalhei-me, refresquei as
ideias e os modos, abri a porta daquela caverna, e fugi da corda que me queria
abocanhar. E vi o mundo. Bem ali, a piscar-me o olho. Hesitei. Talvez hibernada
nos meus lençóis estivesse melhor… Subitamente o meu coração de velha
assustou-me. Bateu. Timidamente, como quem se esqueceu. E depois mais e mais…
Quando se está vivo, torna-se mais fácil o primeiro passo.
O horizonte rasgou-se à minha frente como um postal, as cores
injectaram-me as veias e o presente apertou-me a mão com força, bem-vinda,
porque demoraste tanto? Chorei o meu passado e esqueci o meu futuro; não mais
me acorrento a um tempo que não o momentâneo. Deixei que as minhas utopias me
extorquissem toda a energia, que o meu olhar se fosse debruçando cada vez mais
dentro… Jamais! Não sou uma vitrina de antiguidades, sou uma emoção
movimentada, livre para correr todos os presentes que entender.
Acabaram-se os círculos fechados, as redomas, os labirintos, chutei tudo
isso para um canto, encontrei-me perdida naquela caverna, mesmo a tempo de
viver. Pelo sim, pelo não, vou mandá-la demolir.
Janeiro, 2011